É possível respeitar a terra: sabedorias originárias contra o ecofascismo colonial

Giovana Lizana
5 min readOct 21, 2021

Fotos: Gisele Motta (@esteticaestatica no insta), Assentamento Terra Vista, Arataca — BA, 2021.

para Lilian, minha estrela da constelação de Yingwaz que me ajudou a resgatar minha semente crioula que pensei perdida:
a esperança

para as novas plantas companheiras que carrego no coração após esta Vivência: Eduardo, Pedro, Léo, Silvana, João Karkará, Renan, Érica, Rita, Nildes, Gil, Brígida, Kiune, Lindinês, Gil, Daniel, João Pedro, Hosana, Samurai, Antônio
e outres que cruzaram meus caminhos e deixaram pegadas férteis
e para a querida Lud, com as bênçãos da nova primavera

Em primeiro lugar, eu própria já falei e pensei muitas vezes frases como:

“Tem que acabar a humanidade”
“O ser humano é o câncer do planeta”
“A natureza não nos merece”
“Tomara que acabe a humanidade logo pra Terra poder se curar”.

Estas frases e similares carregam em si uma ideia ecofascista. Portanto, se a defensiva surgiu, saiba: não estou chamando quem reproduz essas ideias de ecofascista. Estou apontando o que há por detrás.

Quem fala essas frases, geralmente, tem boas intenções. Frequentemente, são pessoas que acreditam de fato que a relação da humanidade é necessariamente destrutiva, e por lógica, se a humanidade não sabe conviver com a natureza, deveria acabar, pois a natureza sabe cuidar de si mesma e nós só estragamos tudo.

Esse raciocínio faz total sentido, à primeira vista. O problema é que esse raciocínio já começa baseado em pensamentos equivocados.

A relação da humanidade com a natureza não é naturalmente danosa. O homem branco precisa aprender que, como na frase clássica de mãe quando pedimos pra sair porque todo mundo vai: “você não é todo mundo”.

“A humanidade” não é o punhado de poucos seres humanos da elite que enriquecem às custas da destruição da natureza, da exploração predatória até a última gota. A humanidade é múltipla: nela temos pedreiros, prostitutas, bancários, banqueiros (credo), artesãos, agricultoras, publicitárias, médicos, garis, encarcerades, poetas, pintores, e por aí vai. A humanidade é muita coisa. E a ideia de que a humanidade não sabe relacionar-se com a natureza de forma neutra (que dirá benéfica) tem uma falha fundamental: os povos indígenas.

Os povos originários convivem há milhares de anos com a natureza de forma harmônica, contribuindo inclusive para aumento de sua biodiversidade. São grandes engenheiros genéticos, e prova disso é a Amazônia, riquíssima em biodiversidade também por resultado de ação antrópica — ou seja, humana [1].

Em tempos de ascensão do ecofascismo que afirma que a relação entre humanidade e natureza é inerentemente danosa, é importante contrapor essa ideia: O problema é a relação da humanidade e natureza sob o capitalismo.

Não é à toa que prospera ainda a ideia de que a humanidade não sabe conviver com a natureza. Quando se reforça essa noção com frases como “tem que acabar o ser humano”, o que fica implícito:

1. A humanidade não inclui os povos indígenas, porque
2. Os povos indígenas acabaram e sua maneira harmoniosa de conviver com a natureza é ultrapassada e impraticável;
3. Melhor desistirmos e nos entregarmos a bebida e ao coach porque “tem mais que acabar a humanidade mesmo”, em vez de tomarmos a responsabilidade gigantesca e essencial de sermos a humanidade que vai aprender com os povos originários como respeitar a terra. Eles tem muito mais a nos ensinar do que nós a eles. Nós temos o Elon Musk e eles tem o Ailton Krenak. Quais são as tecnologias que vão nortear nosso bem viver?

Os Mapuche ensinam que as cordilheiras são cobertas por lágrimas de estrelas que viraram gelo [2].

As lágrimas que vertem de nossos olhos quando tomamos rapé, aprendi com um querido amigo Puyanawa, Jósimo, são o encontro do Purus com outro rio de sua região amazônica.

Os Payayá sabem que “o rio é o outro em mim” [3]. Os Krenak o chamam de Watu, o avô. A Vale matou seu avô. [4]

Os Krahô aprendem a agricultura com a deusa-estrela Catxêkwy, que os presenteia com sementes antes de retornar aos céus. Os Krahô tem uma escola com este nome, Escola Agroambiental Catxekwy, e trabalharam em parceria com a EMBRAPA para resgate de sementes crioulas de milho Krahô [5]. Esta parceria, certamente imperfeita, também é uma mostra que não cabe a nós, brancos, só dizer que temos vergonha da colonização e do racismo: podemos colaborar se (e somente se) nos colocarmos verdadeiramente a serviço, ao serviço desinteressado, pois, como aprendi com Mestre Joelson da Teia dos Povos, citando Lao-Tsé:

“a este se pode confiar o reino”.

“As estrelas me disseram:
Ouve muito e fala pouco
Para poder compreender
E conversar com meus caboclos
Os caboclos já chegaram
De braços nus e pés no chão
Eles trazem remédios bons
Para curar os cristãos”. [6]

Aprendi com o Santo Daime que os caboclos curam os cristãos. Oke arô, meu pai Oxóssi, que a flecha da fartura originária rompa os véus de plástico das ilusões coloniais. É possível respeitar a terra [7].

Fotos: Gisele Motta (@esteticaestatica no insta), Assentamento Terra Vista, Arataca — BA, 2021.

[1] LINS, Juliana. Terra Preta de Índio: uma lição dos povos pré-colombianos da Amazônia. Revista Agriculturas • v. 12 — n. 1 • Março 2015

[2] BILBAO, Charles. Serpientes, espíritus y hombres: El relato Mapuche de Treng-Treng y Kay-Kay. TRIM, 10 (2016), pp. 23–34.

[3] Carta VI Jornada de Agroecologia da Bahia — 2019 — Teia dos Povos. Disponível em: <https://teiadospovos.org/carta-da-iv-jornada-de-agroecologia-da-bahia-2019-teia-dos-povos/>

[4] KRENAK, Ailton. “Não é a primeira vez que profetizam nosso fim; enterramos todos os profetas”, diz Ailton Krenak. [Entrevista concedida a] Elaíze Farias. Amazônia Real, 11 fev. 2020. Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/nao-e-a-primeira-vez-que-profetizam-nosso-fim-enterramos-todos-os-profetas-diz-ailton-krenak/>

[5] SANTOS, Nadi. Roças Krahô: Interações ecológicas e socioculturais na Aldeia Pedra Branca/Terra Indígena Krahô — TO. Trabalho de conclusão de Curso (Tecnologia em Agroecologia). Instituto Federal de Brasília — Campus Planaltina, 2017. Disponível em: <https://bdtcpla.omeka.net/items/show/78>
ARTICULAÇÃO NACIONAL DE AGROECOLOGIA et al. As Sementes Tradicionais dos Krahô: Uma experiência de integração das estratégias on farm e ex situ de conservação de recursos genéticos. Rio de Janeiro: AS-PTA, 2014. Disponível em: <https://drive.google.com/drive/folders/1nQmyCM7qhKmRhFgkUyENz6a8-EMSSnh7>

[6] MESTRE IRINEU. As Estrelas, Hino 75 do Cruzeiro.

[7] DI GIMINIANI, Piergiorgio. É possível respeitar a terra? Dilemas ambientais entre fazendeiros Mapuche no Chile. Revista de Antropologia da UFSCar. R@U, 10 (2), jul./dez. 2018: 70–104. Disponível em: <http://www.rau.ufscar.br/wp-content/uploads/2018/11/03.pdf>

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Giovana Lizana

anarcabruxa, feminista, vegana, poetisa, caminhante. A ausência é uma força criativa.